sexta-feira, 1 de maio de 2009

Tlem pala a plaia


Não é o cebolinha falando, sou apenas eu imaginando o título do post sendo proferido por um dos meus estudantes de português aqui em Hangzhou. Iniciando uma - oxalá - longa série de relatos de viagens sobre trilhos China adentro. E afora, se houver realmente como chegar ao Vietnã de trem. Cheguei bem perto disso ao deslizar até Beihai, cidade praiana ao sul; 29 horas de percurso que valeram tanto quanto o destino e aqui transcrevo.

K537 -19:04 – portão 17

Acabo de embarcar na jornada de 26 horas em direção a Nanning, e de constatar que meus óculos-escuros ovais – situados num bolso muito periférico – foram roubados. Tudo bem, tê-los encontrado desviou-me da busca de óculos-escuros perfeitamente circulares. Depois de alguns momentos de amargura, comecei a agradecer por ter colocado a carteira num bolso frontal com zíper e ter passado o cadeado no bolso do Laptop – vou prosseguir as anotações com o caderninho mesmo.

O trem inicia “a longa marcha” e a senhora das frutas passa, aos brados, em velocidade de cruzeiro – talvez um pouco mais rápido que o táxi que me trouxe à Estação Leste de Hangzhou. Olhando para o relógio no painel a cada dez segundos, eu repetia mentalmente o mantra “laideji” (vai dar tempo) e comprovava que 1 hora de antecedência não é o suficiente numa cidade com mais de 5 milhões de habitantes sem metrô. Nem aqui nem na Chi... Índia. Pergunto ao motorista se ele acha que o fluxo vai melhorar com a chegada do metrô em Hangzhou, prevista para 2009 e já adiada para 2011. Ele me conta que “hora do rush vai ser sempre assim” e que o ditie (literalmente, “dentro/na terra” – “metal/trilho”) é uma “coisa pra daqui a muitos anos”. Será que ele acompanha a velocidade incrível com que seu país vem construindo estradas de ferro?

Nanning - Shanghai nan by you.

A senhora das frutas passa de novo, agora silenciosa: olho para as carambolas mas decido não comprar nada (geralmente os chineses já vem preparados, pois a comida no trem é mais cara) e manter o máximo de discrição possível. Já bastam minha camisa carmesim berrante e meu rosto barbado de waiguoren (gente de fora do país), que arranca “hello”s das crianças por onde passo. Sou o único estrangeiro no trem até então. Lembro-me de novo do taxista me perguntando: “Porque você não vai de avião? É mais prático”, fazendo o decolar e pousar da nave com a mão direita. “Trem é melhor para aprender chinês”, digo, “o que eu quero é diversão!”, no que ele abre um enorme sorriso e lança uma gargalhada seca, de uma lufada só.

É animado, sim, mas antes de sacar a câmera vou criar alguma intimidade. Por hoje, só vou comer o sushi que comprei na loja da esquina e, antes que se apaguem as luzes, às 22hs, mergulhar em algum livro. Prometi à minha namorada que leria 8 antes de comprar qualquer exemplar novo. O último foi “O bonde na cidade”, de Maria Beatriz de Castro, e o próximo, 3º da lista, provavelmente será a “Carta ao pai”; Kafka deve ser um bom refúgio nesse momento de atomização extrema, sujeito a regras e um código de conduta que não conheço bem. Antes, talvez seja melhor me afundar no guia Lonely Planet e aprender algo sobre esta Nanning, na qual estarei em um dia. Quantas estações de trem terá? Chegarei na mesma que devo tomar o trem para Beihai, a cidade praiana em si?

8:02 - O (bom) dia (!) amanheceu nublado, escuro, de forma que ainda tem ares de madrugada. Essa alvorada eterna varreu uma insistente série de noites insones com 9 horas de eclipse embalado pela melodia dos trilhos. Sempre durmo melhor em trens. Também tenho a sensação de que é a chance do trabalhador chinês espairecer, deixar-se jogado, fazer alguma manha. É apenas o começo do feriado – para os que não tiveram de trabalhar hoje, Sábado – da semana do primeiro de Outubro, aniversário da Revolução de 49. Neste fim de semana dá-se início ao maior deslocamento humano do planeta – juntamente com o 1 de Maio (semana do trabalhador) e o logisticamente superlativo Festival da Primavera (ano-novo chinês). São centenas de milhões de pessoas realizando um êxodo inverso em direção à laojia – velha casa, terra natal; eu, que sinto saudades da praia e também quero me encontrar com esse algo caro e antigo, também sou uma delas.
Enquanto escrevo, uma velhinha olha-me fixamente. Retribuo com um esboço de sorriso; ela leva alguns segundos para tomar um susto e desviar o rosto. É como se eu fosse uma caravela absurda ao olhar indígena, uma espécie de animal exótico empalhado, mas em pleno movimento, e ela não soubesse ao certo como reagir à informação visual nova; muita gente aqui nunca viu um estrangeiro de perto.

Pela primeira vez ando num trem com televisão. Ela entoa o clipe de uma espécie de música sertaneja. Um sujeito aparece tocando uma miríade de instrumentos que, na verdade, devem ter sido performatizados por outra pessoa. A prática familiar me traz um certo alívio, de fato, algumas coisas nunca mudam. Passem 1000 anos e creio que ainda teremos a mística do artista 10 em 1 que pode muito bem não tocar ou mesmo cantar lhufas, mas sintetiza a obra coletiva em seu carisma.

Os comerciais são majoritariamente voltados para o turismo interno. A diferença com o Brasil é que aqui realmente há como atender toda essa gente para quem anunciam – penso no que aconteceria se os 70 milhões de clientes para quem a Gol diz anunciar resolvessem ir aos aeroportos no mesmo fim de semana. Não que isto aqui também não seja uma espécie de caos para olhos, ouvidos e narizes não acostumados. Vez ou outra a tela plana também lembra que é espressamente proibido fumar fora dos setores designados para tal. No caminho do banheiro passo por um deles e travo a primeira conversa, entre as tragadas do meu interlocutor. “É, o trem parou mas não dá pra descer aqui”, diz. “Pena, eu realmente queria esticar as pernas”, respondo. Ele expira a fumaça com uma expressão divertida mas, ainda assim, tudo aqui me parece mais taciturno que nas viagens que fiz 2 anos atrás, quando morava em Beijing.

A proibição do fumo também estava lá, mas era comumente desafiada, ou mesmo ignorada, arrancando alguns berros do liecheyuan (comissário do trem) e nada além. A presença da TV em cada cabine de 6 pessoas – e de todas as instituições que carrega consigo – parece muito mais esmagadora. Mais que isso: a janela de plasma parece ter tolhido todo o ânimo dos chineses daquele trem em tagarelar, jogar baralho ou tocar instrumentos tradicionais – o que sempre me deixava em transe. Quedam-se ali, embasbacados assistindo a telinha, ou buscam refúgio no mirar pela janela, na leitura ou ainda, como eu, no escrever. Destes não vejo sinal, mas sei que estão por aí. A calmaria é geralmente quebrada por um toque de celular estapafúrdio e absurdamente alto ou pelos jogos e cantigas das crianças; aí sim tenho certeza de que estamos num trem.


14:16 – A kuaican, refeição pronta trazida num carrinho, não me apetece e resolvo conhecer o carro restaurante. Depois algum papo com os “camaradas” – tongzhi – de cabine sobre o Brasil e a variedade de dialetos e sotaques existentes na China, sinto-me mais à vontade para deixar a toca. Preciso de um almoço régio, pois o café da manhã consistiu em pão, café e nas carambolas que, finalmente, comprei. Revelaram-se extremamente doces.

Já esperava um cardápio somente em chinês, a grande surpresa foi compreender a caligrafia de quem o havia escrito, a ponto de barganhar com o mestre-cuca a adição de cogumenlos na carne com vegetais refogados. Pergunto se tem cerveja pequena e gelada. No lugar dela, tomo um meiyou – não tem. Sentindo a pimenta nas primeiras bocadas, peço a grande e quente mesmo. Ao que parece, ela é a chave de toda a animação que faltava nos outros carros; conversas desembocando em gargalhadas e até num possível projeto amoroso; recém-conhecidos bebendo de braços entrecruzados tal qual a cevada fosse champagne. Perco-me na palavras de Kafka, levanto as pernas autometicamente pensando que é a minha mãe quem passa o esfregão e só desperto quando a fuwuyuan – garçonete – pede encarecidamente que eu volte para a minha cabine, que eles também querem almoçar.

De volta ao bunker, ponho-me a escrever e um senhor, até então reticente, a me observar. Chama-se Guan, e começa com o de praxe: quer saber de que país venho, que espécie de língua falamos lá e faz o onipresente e sempre bem-vindo elogio ao nosso futebol. Estamos na estação de Guilin, um dos pontos turísticos chineses mais expressivos: ele explica que isso se deve, em grande parte, a uma peculiar característica topográfica, salpicando a região de inúmeras montanhas independentes em vez de grandes cadeias. Vendo-as agora pela janela, adquirem um quê de daliniano em sua verticalidade e ângulos improváveis. Meu novo amigo ainda dispende meia-hora corrigindo meus tons – o tipo de coisa que as aulas regulares de mandarim não oferecem. Logo me conta o que pode ser uma das raízes de tanta dedicação: o filho de 17 anos estuda, há muito, nos E.U.A. “O chinês dele ficou ruim”, lamenta. Ainda estou em tempo para a sobremesa, escovo os dentes antes, tentando tornar a carambola mais azeda.

Guilin pela janela by you.

O pessoal – somos íntimos agora – vira-se todo para a TV, reconheço o rosto de um ator famoso; ele era o “Espada Quebrada” de “Herói”, filme de Zhang Yimou. Consigo entender boa parte da película, mas acabo sucumbindo a um obstáculo ainda mais inclemente que o lingüístico: o sono. 2 horas de apagão depois, levanto-me, grogue, e o Sr. Guan me dá um gole de baijiu para “acordar”, é a branquinha dos chinos. A bebida faz efeito e logo toda a cabine e adjacências formam um grupo coeso como o arroz chinês; até a inevitável separação anunciada pela chegada na estação de Nanning.

Muitos me aconselharam a tomar o ônibus, que sairia naquela mesma noite; lhes falei de minha preferência pelo trem, que faz o trajeto nas mesmas 3 horas e me daria acesso a uma paisagem diurna muito mais rica. “Também é mais seguro”, emendou um nativo daquela província, Guangxi.

Despedimo-nos e vou direto comprar os tickets de ida e volta para Beihai; o estrangeiro é a estratégia preferida dos fura-filas chineses mas o desta noite amargou uma derrota ao me ouvir falar desengonçado – mas em bom tom – que ele fosse lá pra trás como todo mundo. Fora da estação, barganhei com algumas caça-hospedes e acabei passando a noite no hotel/sobre-loja de uma elétrica; quarto com banheiro, TV, ventilador, mais alguns mosquitos e uma barata, da qual me ocupei de exerminar assim que cheguei – muito bom por 10 reais, na verdade. Uma volta pela avenida principal me deu uma idéia de quão longe estava do ocidente: nenhum Mc Donald’s ou KFC à vista.

Pela manhã, pego os 15 yuan de depósito pela chave no caixa/recepção e encontro a estação de Nanning movimentada, mas ainda assim trafegável. O policial ferroviário da plataforma de embarque identifica-me como estrangeiro perdido e chama-me a atenção. Aponta o meu vagão, semblante desconfiado, como todo bom matenedor da ordem. Fôssemos todos apenas mãos, talvez eu pudesse me camuflar melhor na multidão; muitos chineses deixam crescer uma ou mais unhas da mão direita – para o cofiar, coceiras, comichões, higiene nasal ou auricular. Ao menos em público, justifico o cultivo do hábito pela música, no intercurso com minha guitarra acústica española.


N713 – 9:36 – portão 2

Trenzinho para o trem by you. Concentração by you.

O trem para Beihai me lembra muito o Vitória-Minas brasileiro, tanto o estado de conservação (bom para um trem de meia-idade) quanto pela simplicidade das pessoas. Mas uma informação pintada do lado de fora dos vagões deixa clara a diferença: 100 km/h. Meus companheiros de mesa (em meio a bancos de 3 lugares cada) são: um casal jovem e simpático que me abarrota de lixias e pitombas; uma senhora carregando o neto, que se lambuza com uma espiga de milho; uma estudante de contabilidade nativa de Beihai, que me dá as dicas de como chegar ao meu hotel e, finalmente; um rapaz bronzeado e miúdo que não pára de escrever no celular. Ostenta uma enorme pochete; dando-lhe ares de cinturão mundial dos pesos-pena.

Dining-car competitors by you.

Leaving from the shadows by you.

O ar condicionado dá lugar às janela abertas e o clima fica tão agradável que já posso sentir a maresia inundando o trem, tal qual este sol das dez. O calor aumenta e me faz ensopar o assento; decido dar uma volta, câmera estrategicamente escondida na sacola que carrego. Avanço em meio a uma quantidade massiva de olhares curiosos, sorrisos, “hello”s e vendedores de frutas, macarrão instantâneo, meias, brinquedos, cigarros... Chego até o ponto em que o trem fica, misteriosamente vazio e as “ferro-moças” não me deixam mais prosseguir. Não teve jeitinho ou conversa que resolvesse.

Why is the world moving so fast? by you. Bons ventos by you.
Garota propaganda by you.
Chinesada colorida by you. Basta adicionar água quente by you.
Carteado sobre trilhos by you.

Make yourself confortable by you. Quase lá - Almost there by you.
Quem anda na linha... by you. En route by you.


Prolonguei ao máximo o passeio de volta a meu assento, como que poupando os demais passageiros de mais uma vez vislumbrar um estrangeiro peludo despindo-se para refrescar; logo desembarcaríamos para uma outra história em Beihai (cujas fotos podem ser vistas aqui). A volta? Foi tanto sono e conversa que não escrevi; viagem de trem tem dessas!

Beihai Railway Station

Até a próxima!

Rodrigo B.


Ps: o tais óculos roubados eu havia esquecido em cima da mesa de meu quarto; desculpas formais pelos vitupérios que destinei aos chineses da estação!

Nenhum comentário: